Histórias, nossas histórias

Descubra a trajetória de pessoas que estão superando seus medos em um mundo no qual sempre se viram diferentes.

Valéria, mulher lésbica, aberta a desconstruir-se, em constante busca de si mesma, em um relacionamento saudável com uma mulher há 10 anos.

“Eu me via diferente da maioria na infância e na adolescência, desde que passei a ter consciência sobre mim mesma. Meu jeito um pouco ‘desajeitado’ forjava minha postura sempre em desacordo com a feminilidade que as pessoas esperavam de mim.

Em especial minha família, extremamente conservadora. Fui alvo de bullying na escola, agredida verbal e até fisicamente por outras meninas. Eu cresci aprendendo que não estava certo ser como eu era. Tinha algo errado, fora do lugar… e eu reprimia todas as características em mim que identificava dentro desse lugar de desajuste.

Namorei um rapaz, um relacionamento extremamente abusivo em que eu me sentia inferior, com uma profunda necessidade de ser validada e aceita por ele.

Até hoje, 20 anos depois das primeiras experiências, ainda sinto que tenho algumas dificuldades por conta de tanta auto repressão que pratiquei ao longo de toda minha vida.

É estranho até verbalizar isso. Sim, minha vida sexual e minha autoconfiança melhoraram muito com o passar dos anos e com terapia (onde de fato descobri que meus complexos estavam todos relacionados com esse histórico de violência e profunda repressão à minha orientação sexual). Mas sinto que ainda tenho coisas a descobrir sobre mim para experimentar mais liberdade e autenticidade.

Aquele sentimento permanente de inadequação da infância e da adolescência me trouxeram até aqui. Estou no caminho do autoconhecimento. Leva tempo, muita coragem e dedicação, mas penso que não existe outra forma para me libertar das prisões e amarras em que eu mesma me mantinha.”

Eduardo, transgênero que, em desconformidade com o padrão binário imposto socialmente, questiona-se sobre sua identidade e expressão de gênero e busca o caminho onde possa encontrar liberdade de ser e autenticidade.

“Atribuiram-me o gênero masculino e cresci sob esse rótulo. Desde os seis anos de idade, eu já apresentava trejeitos ´femininos´ e sempre gostei de me ver assim. Roupas, maquiagem, sapatos. Mas durante grande parte da minha vida não pude ser assim livremente, porque era ´errado´. Logo me entendi como uma pessoa trans não binária, e comecei quando possível a optar pelo uso do artigo feminino, porém na maioria das vezes estava ´satisfeita´ com meu corpo masculino.

Depois de muito tempo pesquisando, eu me entendi uma pessoa de gênero fluído. Meu corpo tem mais traços masculinos do que femininos e comumente reflito em como seria mudar isso.

Mas não sinto uma necessidade muito pulsante e nem a disforia que algumas pessoas trans sentem com seu corpo, com as marcas ligadas ao gênero de atribuição. Penso que estaria ´tudo bem´ para mim continuar com o corpo que sempre tive. No entanto estando eu agora optando na maioria das vezes por uma aparência feminina, e não masculina, penso na hormonização trans para adotar essa aparência mais feminina no geral, mas tenho medo de me arrepender.

Seriam esses pensamentos e sentimentos apenas ´coisas da minha cabeça´? Vivo em um mundo tão sem referências para pessoas como eu.”

Casal Manoela e Valentina, mulheres cis lésbicas

“Já estávamos juntas havia cinco anos quando resolvemos abrir a relação. Era muito mais uma demanda da Valentina, nunca explicitamente verbalizada, mas eu percebia que ela queria ter outras experiências.

“Começamos a namorar cedo, eu com 24, ela com 21, e logo fomos morar juntas. Já estávamos em um relacionamento havia cinco anos quando resolvemos abrir a relação. Era muito mais uma demanda da Valentina, nunca explicitamente verbalizada, mas eu percebia que ela queria ter outras experiências.  E eu preferia assim do que descobrir que ela saiu com outra pessoa sem termos acordado isso. Eu queria que ela se sentisse feliz, realizada, livre ao meu lado – e pensei que seria uma experiência boa pra mim também, poder sair com outras pessoas quando eu tivesse vontade. Conseguimos administrar bem por dois anos.

Estabelecemos algumas regras – entre elas a de não ficar com ninguém na presença da outra e também de não contar nada do que se faz fora do namoro. Só que eu nunca tinha vontade de ficar com ninguém. No início achava que era por algumas de minhas muitas inseguranças em relação à minha aparência, mas percebi que eu não precisava mesmo, não sentia vontade, tampouco necessidade de estar com outras pessoas. E comecei a me questionar cada vez que eu percebia que ela tinha se encontrado com uma outra mulher: por que eu fiz isso? Por que eu propus abrirmos a relação?

Por não perceber o motivo, comecei a me culpar, a pensar nisso o tempo todo. Era como se eu tivesse presa na minha própria escolha, sem ter coragem de voltar atrás… o que ela poderia fazer se eu propusesse voltarmos ao modelo anterior? Eu só conseguia pensar que Valentina não aceitaria e que, com o tempo, iria terminar comigo.

E precisava dela ao meu lado. Mas não era justo eu sentir toda aquela angústia sozinha, não conseguia nem mais trabalhar. Aí comecei a transferir pra ela a culpa por toda aquela ansiedade. Brigava por qualquer coisa, perguntava onde ela ia, comecei a ter um ciúme doentio. E no fundo eu tinha mesmo medo de perdê-la e de cair em Depressão novamente, como eu era antes da Valentina.

Foi ela que percebeu que algo estava muito errado. E resolveu sentar comigo, conversar e propor uma terapia de casal. Não imaginava, não via esse diálogo como possível, mas aconteceu. Eu ainda tenho muita angústia, medo de não agradar, de não ser suficiente como percebia que não era antes, medo de perder, de me ver sozinha novamente… mas não sei se temos que continuar juntas e de que forma. Só sei que não posso mais comprometer a minha saúde mental, seja qual for nossa decisão.

E preciso sair mais forte e autoconfiante desse processo”.

Luna, mulher trans, pôde despertar para sua verdadeira identidade de gênero depois de estar casada e ter filhos

“Foram 38 anos sob auto repressão. Eu nasci e me atribuíram o gênero masculino, era o ‘menino’ que a família esperava. Só que desde que tenho consciência da minha existência, havia alguma inquietação íntima e velada. Eu me olhava no espelho ainda na infância buscando em minha aparência algumas similaridades com a imagem feminina.

Logo comecei a namorar, minha esposa e eu casamos quando eu tinha 26. Parecia que a vida tomava um rumo, eu estava ”em paz”, estável, ainda que com uma inquietação com a qual aprendi a conviver. Tive três filhos lindos, construí uma carreira sólida. E passei a trabalhar cada vez mais. 13, 14, 16 horas por dia. Claramente desenvolvi uma compulsão pelo trabalho, por ser produtiva, por dar resultados, mas sem estar consciente do porquê eu precisava tanto consumir meu tempo.

Havia algo de errado mas eu não conseguia parar para entender. Passei a ter sintomas físicos do estresse do excesso de trabalho e, um dia, não conseguia mais sair de casa para encarar minha rotina. Foi o Burnout, fruto de um transtorno de ansiedade generalizada, que me afundou num primeiro momento, mas marcou o início do meu processo de consciência sobre mim mesma.

Comecei a terapia, foram meses de análise até despertar para uma auto repressão que estava lá, escondida, ditando meus comportamentos de fuga de uma necessidade carregada de certa forma por toda a vida. Eu não me sinto e nunca me senti plena, realizada, feliz, em um corpo masculino. É como se tudo viesse à luz da razão, todas as peças do quebra-cabeça se encaixassem pra me levar a uma convicção clara do que eu realmente queria.

Eu preciso transicionar. Preciso atender a esse chamado. É a minha identidade. Estar consciente já foi metade do caminho, mas agora preciso lutar contra muitos medos. Eu me abri para minha esposa, para alguns amigos, para meu gerente no trabalho. Não tive acolhimento. Recebi incompreensão, revolta e agressividade como resposta. E agora tenho medo de destruir tudo que construí. Minha carreira sólida, meu nome, minha família, a admiração dos meus filhos. Medo da hormonização, de como meu corpo vai reagir. Estou triste, e muito sozinha. Só que mais forte; e preciso agora aprender a encarar de frente tudo o que vem como consequência. Eu sei onde está a minha felicidade. Agora, eu sei onde ela está.

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